sexta-feira, 30 de maio de 2014

Que não nos falte...

Ontem foi o dia da espiga.
Dou por mim a pensar se os meus filhos saberão o significado que tem. Provavelmente, não. Mea culpa.
Ele (o ramo) aparece todos os anos cá em casa, já feito, substituo o novo e fresco, pelo velho e seco, e ali fica, impávido e sereno, até ao ano seguinte, nele depositadas as preces de que não nos falte o pão (espiga), o amor (papoila), o azeite (oliveira), a saúde e a força (alecrim), o ouro e a prata ,que a mim me soa a dinheiro (malmequer), e o vinho (videira), que eu dispenso, mas que dá jeito para quando se reúnem amigos e família que o apreciam.

Os meus filhos não saberão certamente o significado. Não, como eu, que me recordo de o apanhar quando criança. O dia da espiga, era um dia de alegria, em que a minha mãe se juntava a outras amigas vizinhas, elas e os filhos todos. Nós, companheiros de rua, de brincadeiras, de jogos de escondidas, de corridas desenfreadas, naquele dia, era o dia em que o montes eram nossos, nossos e das nossas mães, todos juntos, em busca das papoilas, da espiga, do alecrim, de ver quem apanhava a maior papoila, o alecrim mais bonito, de nos mandarmos para o chão, de sentirmos o cheiro da terra, de regressarmos de pernas e mãos arranhadas, enquanto a mãe compunha o ramalhete, atando-o com uma fita, e depositando-o num sítio seguro, até ao ano seguinte. Depositando nele a esperança de um ano melhor, de um ano sem faltas, e eu sabendo e vendo nos seus olhos, que a esperança existia, a esperança ver no meu pai (que pai não era) uma mudança, que a espiga trouxesse a magia, a magia do pão, do azeite, do amor e da paz, que era um pai que deveria ajudar nessa conquista, mas um pai que não fazia, que não queria, que pão houvesse, para ele, que vinho houvesse, para ele, tudo o resto era de menos importância, e talvez por obra e graça de uma espiga, ele caísse do céu, para quem com ele vivia.

Há muitos anos que não apanho a espiga. É logo pela manhã que ligo à minha mãe, e lhe pergunto "já me compraste a espiga?". Há muitos anos que é ela quem a compra. À porta do metro, na esquina de uma rua, longe dos montes de outrora, onde hoje não há papoilas, nem espiga, nem alecrim que se vislumbre. E a espiga aparece-me assim, uma oferenda comprada, dois euros. Dois euros que ajudaram uma família a manter o pão, o azeite, e que imagino que por esses montes e vales, com entusiasmo e alegria, levaram seus filhos a apanhar com eles.

Em seguida, e tem sido nos últimos anos assim, aparece-me outra espiga. A nossa dona Lena, outrora presença assídua na nossa casa, para ajudar na organização e limpeza da mesma, hoje presença mais escassa, que a espiga outrora abundante, também nos trouxe a crise por arrasto, e a nossa dona Lena, passou a vir menos vezes. Mas a nossa dona Lena, não quer que nos falte o pão, e o azeite, e a paz e o amor, que foi sempre isso que teve de todos nós, e por isso todos os anos, a nossa dona Lena, apanha uma espiga para si, e outra para nós.
E assim tenho duas espigas. Que vou depositar no mesmo local, e onde vou depositar a prece de que não nos falte o pão, o azeite, o trabalho e algum dinheiro, mas acima de tudo a paz e o amor.

4 comentários:

  1. Mais uma bonita crônica, como sempre. Parabéns, Rainha!

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  2. Gostei da história e da história por trás da espiga, que não conhecia. Que nos vos falte nada disso então! Um beijinho :)

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  3. Não sei Galopim, se esta não é uma tradição "nacional"... É celebrado na quinta-feira da Ascenção. Um bj!

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