quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ela lembra-se

Era sempre na altura do entrudo, aquela grande festa a que todos denominavam de matança. Fazia frio, muito frio, principalmente naquela zona mais interior do alto Ribatejo. Ela lembra-se de gostar de ir à matança até à idade da adolescência, em que tudo já lhe parecia um sacrifício, as mesmas pessoas, a mesma conversa, os mesmos rituais, o frio. O raio do frio. Mas até essa idade, a matança era um momento único. Era um dia diferente dos tantos habituais, altura em rumavam à terra, em que viam os avós, os tios, os primos. O primo Orlando, por quem nutria uma paixoneta secreta. O primo mais velho e giro, que outrora tinha carregado com ela dentro de um carro de mão, por entre trilhos de alfaces e couves enquanto ela gritava entre gargalhadas "mais devagarre Orrlando!".
Quando acordava nessa manhã, ainda o dia não tinha clareado, já a avó tinha a grande fogueira ateada, no meio do monte onde se ia desencadear todo o processo da matança. Sabia todos os passos de cor, já, a chegada da família, os homens a encaminharem-se cabeço acima de facas aguçadas em punho, as mulheres com grandes alguidares de barro e colheres de pau gigantes. Ela encaminhava-se para a zona do fatídico momento, sabia os guinchos que iria ouvir, sabia o quanto os porcos iriam espernear, sabia que a sua tarefa era mexer freneticamente o sangue que iria jorrar para dentro do alguidar, de modo a não coalhar. Sabia que quando as mãos lhe fraquejassem, de frio e de cansaço, as tias iriam gritar "não pares menina, não pares, olha que o sangue coalha", sabia que não podia falhar, sob pena de estragar uma quantidade atroz de farinheiras. Conhecia o cheiro agonizante a sangue quente, afastava ligeiramente a face do vapor , conhecia o cheiro seguinte do porco esventrado, das tripas fumegantes, da carne ainda morna. Sabia de cor, já, todo o cardápio do dia, a primeira pausa para o pequeno almoço, cachola assada na brasa, bacalhau assado na brasa, pão caseiro, bolos, copos de vinho para os homens, copos de sumol para as mulheres. Ouvia a típica frase do avô, qual chefe de família, qual anfitrião de peito inchado "comam, comam que há muita comida!". Depois ouvia-o bichanar no ouvido da avó "quantas arrobas tinham os porcos do teu irmão?" e a avó de sorriso matreiro na cara respondia "um tinha doze, o outro tinha treze", e o avô sorria com a certeza do dever cumprido. A balança tinha marcado umas quantas arrobas a mais do que os porcos vizinhos, mortos quinze dias antes. Na engorda dos porcos, eles eram reis, e o orgulho era patente.
Depois as mulheres, de galochas calçadas, sentavam-se em cima da carroça onde estavam já as tripas aninhadas em alguidares, e rumavam à ribeira. Ela nem sempre ia. Mas de quando em vez, pedia umas galochas à tia, e juntava-se ao grupo. E com elas lavava as tripas, e via a imensidão de cocó, ribeira abaixo, a boiar em direção ao tejo.
As mulheres falavam alto, e riam, e ela gostava de as ouvir, a conversar sobre trivialidades da vida, ou sobre um ou outro caso mais sórdido da vida alheia.
E depois regressavam de tripas vazias, prontas a serem novamente cheias, de carne e gordura, e dispostas ao fumeiro. E nessa altura, já os homens tinham os porcos trinchados, dispostos em alguidares alinhados, e ouvia-se mais uma vez a voz potente do avô "vamos comer. vocês comam, que há aqui muita comida!" 
 
 

4 comentários:

  1. Rainha, o teu texto, quase todo ele, com uma diferença aqui ou acolá, fez-me reviver o meu passado.
    Passado esse que gostaria tanto que os meus filhos tb tivessem, quer queiramos, quer não, são as nossas raízes de quem vive/viveu em aldeias.
    O orgulho de poder comer a "nossa" carne que tem outro sabor, como tão bem dizem os meus avós.
    A nossa matança era em Agosto, para todos os filhos estarem presentes, nesses 2/3 dias de festança.
    Saudades desse tempo, muitas mesmo!!
    Obrigado Rainha, por me ter levado aos confins da minha memoria e relembrar tanta alegria e felicidade!

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  2. Este año como cada año, nuestro tren parara en alguna estación, depende de cada uno de nosotros dejar ir a la tristezas, miedos, frustraciones, malos momentos, desamor. Agradece a cada uno de ellos.. su compañía y sus enseñanzas, aunque hayan sido dolorosas, déjalos ir, déjalos bajar de este tren. Deseo que en esta parada, a tu tren suban miles de bendiciones, sueños alcanzables, amor, abundancia, fuerza y determinación para seguir tu viaje.
    Hoy en mi vagón quedaran puestos desocupados y espero te sientes a mi lado para compartir junt@s este nuevo viaje. FELIZ NUEVO COMIENZO EN ESTE AÑO 2015!!!

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